A onda perfeita

Quando eu tinha 12 anos fui passar as primeiras férias de inverno na cidade em que meu pai estava morando. Uma cidade muito pequena, com menos de 20 mil habitantes, cercada de água e onde tudo remetia a outro século. Meu pai morava na praia, que ficava 7km do centro, por uma longa estrada de areia. A gente não ia muito pra cidade e poucas pessoas moravam na praia. O movimento era quase zero naquela época do ano ali. 

Então eu conheci um menino. Ele se apresentava como Joca. Não sei qual era o nome dele de verdade, pois nomes e sobrenomes eram apenas rótulos e, naquela época, importava apenas os que a gente se intitulava. Ele era um menino quieto, 15 anos, cabelos longos, tinha um rosto lindo e um sorriso triste. Olhos que tinham uma profundeza e ao mesmo tempo uma opacidade sem vida. Não consigo lembrar a cor dos olhos dele mais. Não sei dizer se eram azuis, verdes ou castanhos. Só me lembro de nunca ter visto olhos tão sem vida. Pelo menos em um adolescente. Ele não tinha amigos, não tinha namoradas e morava sozinho em uma casa, na praia ao lado, que talvez nem fosse dele ou da família. Ninguém visitava ele e ele não visitava ninguém. 

Enquanto eu passava os dias lendo e escrevendo nas minhas agendas, ele passava os dias surfando. Queria pegar a onda perfeita. E quando ele saia da água, ficamos conversando, na beira da praia, enrolados em cobertores até a hora que desse fome ou sono. Então cada um ia pra sua casa. A gente tinha histórias parecidas. Pais divorciados, embora os deles tivessem se separado recentemente e os meus eram separados desde que eu me conhecia por gente. Pai que tinha ido morar em outra cidade. Mães que não nos compreendiam (pelo menos na época era o que a gente pensava) e com quem a gente brigava muito. 

Eu estava ali passando umas férias, eles estava ali eternizado. Com um único objetivo: a onda perfeita. Todos os dias ele perguntava se eu achava que o dia seguinte seria o dia. O dia da onda perfeita. E eu, no auge da minha grande maturidade dos doze anos, respondia que com certeza. E perguntava pra ele o que significava a onda perfeita e ele sempre respondia: um novo começo. Eu só nunca tinha entendido o que a onda perfeita realmente significava pra ele. Até hoje. 

A onda perfeita do Joca aconteceu no dia 01 de agosto de 1992 por volta das 14 horas da tarde. Eu só o vi boiando, entre as pedras, as 15:30, quando me sentei pra ler "A marca de uma lágrima" na guarita desativada. Não sei o que se passou exatamente depois disso, pois os fatos são confusos nas minhas lembranças. Mas o Joca se foi. Morreu afogado. "Foi acidente", as pessoas da praia falavam. "Uma fatalidade".

As minhas férias acabaram. As aulas retomaram e eu guardei o Joca por alguns anos em meu coração. Depois ele foi pra uma caixinha de recordações que ficou esquecida em algum canto da minha memória. Confesso que eu nunca parei pra questionar ou não se havia sido realmente um acidente. Bloqueei da minha memória. Até hoje. Até ler um livro incrível que fez todo sentido pra mim. E então o Joca voltou. Com seu sorriso triste e meu medo de que a culpa tinha sido minha. Se eu tivesse ido para praia mais cedo, se eu tivesse entendido o que era a onda perfeita... Mas hoje, quando revi seu sorriso triste, em minhas memórias, eu entendi: o novo começo que ele buscava ele encontrou. Não foi acidente. Não foi fatalidade. Foi a onda perfeita que ele buscava todos os dias no mar. Aquele foi o dia que ele escolheu e a culpa não era minha. 
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Autor Luísa Aranha

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